sábado, 18 de junho de 2011

O FIM DO "ITACARÉ"

 Notícia de jornal da época

Ainda não eram 9 horas, mas faltava pouco. Dia 23 de agosto de 1939, quarta-feira. No Cine-Theatro Ilheos, o operador Péricles Tavares acaba de desenhar as últimas letras da tabuleta que anuncia para o domingo o filme Stella Dallas ou A Mãe Redentora. Afasta-se para um derradeiro olhar avaliador, vê que a tinta secou e sai com a tabuleta.

Assim eram anunciados os filmes - em tabuletas amarradas aos postes de iluminação. Péricles já estava na praça quando alguém, que olhava para o mar na direção do Morro de Pernambuco, solta o grito:

- O Itacaré afundou!

Péricles larga a tabuleta e firma a vista. O iate está adernado, com parte do casco à mostra, e a hélice ainda gira, gira, gira, como se estivesse a fender águas profundas. O dia está claro, não há sinais de chuva, mas venta muito. Aquele vento forte que sopra do Leste e forma na perigosa barra de Ilhéus vagalhões espumejantes.

Com certeza um deles bateu no Itacaré, o navio adernou, a carga solta correu para a outra borda - e o iate com excesso de passageiros não pode equilibrar-se. A borda havia tocado na areia do canal, que era raso. Por isso, e pelas águas às vezes agitadas, a entrada da barra exigia prático.

O prático conhecia bem as agruras da barra. Quando um navio apitava, ao largo, nas imediações da Pedra dos Ilhéus, o prático dirigia-se para o canal, num barco com dois remadores e bandeira vermelha. Cabia-lhe, agitando a bandeira, sinalizar à esquerda, ao centro e à direita.

Cada movimento desses era um aviso: venha devagar, lance âncora e aguarde bom tempo, pode entrar no canal agora mesmo. Precauções necessárias. Ali, na Praia da Concha, já haviam encalhado o cargueiro sueco Liguria e o norueguês Bencas. Todo cuidado era pouco. Será que o comandante do Itacaré havia interpretado bem o movimento da bandeira?

Da praça, e logo depois da beira-mar, Péricles acompanhou os gritos dos náufragos, as tentativas de salvamento. Houve quem quisesse romper o casco do iate a machadadas. Falou-se até em dinamitá-lo. Muitos passageiros morriam nos camarotes que a preamar ia enchendo. Pescadores queriam ajudar. O engenheiro Paulo Fontes reanimava os passageiros presos com tônicos cardíacos. A draga Bahia, com sua equipagem, participava dos esforços de salvamento. Entre os ilheenses, destacou-se Virolli, um boêmio, bom nadador. Salvou muitos e transformou-se em herói.

Péricles ainda se comove ao recordar o naufrágio. Anos depois, nos campos da Itália, como pracinha, enfrentava os horrores da guerra, a carnificina - mas alguns lances dramáticos do naufrágio do Itacaré pareciam gravados a fogo na memória. Um deles foi a morte do português Lourenço, o verdureiro que todo mundo conhecia nas ruas de Ilhéus. Era gordo, não conseguiu passar pela vigia, mesmo com o corpo lambuzado de óleo. Viu a morte chegar, passo a passo, apoderar-se dele, secar-lhe todas as fontes de vida. E antes de morrer, tomado pela doce misericórdia dos mártires, dizia:

- Salvem-se. Salvem-se. Eu não posso sair. Infelizmente sou gordo. Adeus.

Outro lance foi a chegada dos cadáveres ao necrotério improvisado na Pensão Coelho, que ficava no espaço hoje ocupado pelo Banco Itaú. Ao todo treze, dizia-se. A curiosidade popular crescia, a cidade vivendo horas de grande nervosismo. Quase todos os moradores na beira da praia, a olhar o casco do Itacaré junto do Morro de Pernambuco, ou, da praça perto do cinema, querendo saber quem tinha morrido, quem se salvara.

Com o Itacaré, naufragaram e perderam-se mais de três filmes, além do que estava programado para o domingo: Doutor Sócrates, com Paul Muni, Os Navais Desembarcaram e o seriado Flash Gordon no Planeta Mongo. Este cronista, que era menino, foi informado de que também se perdeu o último episódio do seriado O Guarda Vingador. Mas quem estava pensando em cinema? O naufrágio do Itacaré galvanizava as emoções, o naufrágio no canal da barra era real.

Sessenta anos depois, com narração de Renata Smith e edição de Rogério Santos, a TV Santa Cruz evocou o sinistro, em página de rara beleza formal. E assim, graças à sensibilidade do seu diretor Lício Fontes, veio juntar-se aos que se esforçam para trazer à tona a submersa história de Ilhéus e vizinhanças.

(Crônicas da Capitania, Hélio Pólvora, Editora Legnar, 2000, pp.110-2)

terça-feira, 7 de junho de 2011

ILHEENSE OU ILHEUENSE?

Praça Castro Alves/Acervo José Nazal

Conta o historiador Arléo Barbosa que até meados da década de vinte, dois gentílicos eram usados para o nativo de Ilhéus: ilheense e ilheuense. O termo ilheense era usado pelas pessoas cultas e o outro  era mais popular. As duas formas eram discutidas pelos estudiosos da terra sem que se chegasse a qualquer conclusão. 

Em 1924, Luiz Edmundo, pseudônimo de eficiente professor de Português, da cidade, teve a ideia de submeter a questão ao veredicto do famoso filólogo João Ribeiro. Diante da exposição de motivos apresentados pelo professor de Ilhéus, o ilustre gramático respondeu da seguinte maneira:

"Resumindo a sua longa consulta vemos que a forma ilheuense é a mais popular e a ilheense a preferida por pessoas cultas. O hiato existe em ambas as formas e o hiato não é um vício, mas simples ocorrência por vezes inevitável. O hiato só é vicioso quando propositadamente empregado, a não ser para qualquer efeito onomatopaico. O contrário seria condenar todas as vozes que contém hiatos e são inumeráveis.

De todas as formas propostas a que me parece mais razoável é a que não altera a palavra primitiva, que de si mesma é um nome gentílico. Entendendo que os ilhéus é designação  suficiente para os habitantes do lugar como os dos "bornéus" e o dos jaós ou jaús, naturais de Jaúa (hoje mais comum é Java) e os maranhões expressão antiga.

Os nomes gentílicos oferecem grande variedade de formas com sufixo: ano, ense, iço etc. No Brasil, o sufixo ista exemplifica-se em geralista (habitante dos geraes, campo ou planalto interior) e nortista, sulista (habitante do norte e do sul) expressões desconhecidas em Portugal e ali designadas como brasileirismo.

Poder-se-ia dizer de vez de Ilhéus ou ilheistas, como propriedade igual à dos nomes citados. Não aconselhamos, porém, um emprego sem uso, que ainda não foi consagrado pelo povo que é em geal, o árbitro nessas indecisões.

Nenhum dos termos apontados desmerece o apoio que receberam: ilheense e ilheuense. Eu diria Ilhéus, ou ilheista, preferentemente a primeira. Causa espécie que não tenha aparecido na sua resenha o termo-ilheano de pronúncia mais suave que ilheuense ou mesmo ilheense.

Como quer que seja, parece que o tempo dirá a última palavra nessas vacilações. Não é este o caso único a registrar entre os gentílicos locais brasileiros que são por vezes extravagantes como Matogrossense ou Riograndense do sul, que parecem já agora inevitáveis e seria tolices por embargos a essas palavras sesquipedaes análogas São Johanenses d´El Rei.

A cidade do Rio de Janeiro adotou "carioca" como gentílico local e o Estado do Rio de Janeiro o nome erudito de "fluminense" neologismos cômodos. 

O helenista Vilhena no princípio do século passado criou o termo erudito "soteropolitano" (de soterópolis), Cidade do Salvador, para os da Bahia. Os mineiros fizeram muito bem em suprimir o segundo termo do radical Minas Gerais. 

Tudo, porém, depende do uso que conseguir generalizar-se  e a que nos devemos submeter sem acoimar. Essa a verdadeira lição nas questões do vocabulário. Também esse é o momento mais propício às pessoas doutas que queiram intervir com esperança de resultado aproveitável". 
Ass. João Ribeiro.

Atualmente, o gentílico usado é ilheense. Tudo indica que as pessoas doutas conseguiram influenciar e o tempo, como diria o grande estudioso da língua portuguesa, deu a sua última palavra.

(Notícia Histórica de Ilhéus, Carlos Alberto Arléo Barbosa, pp.75-6)